nº 17 ano 5 | Junho 2014
Resenha

Das paixões despertadas pelas cidades

Por Eliana Kuster

Mário Quintana, em seu poema “O Mapa”, nos revela o segredo: uma cidade é um corpo. Podemos nos familiarizar tanto com ela que passamos, como o poeta, a senti-la como parte da nossa própria anatomia. Conhecer suas ruas, becos, vielas, casarios, costumes, como quem sabe de cor os sinais, cicatrizes, cor dos olhos e textura da pele de um ser amado. Quem sabe, conhecê-la como a nós mesmos, Quintana aponta.

É possível fazer uma cartografia dos afetos que nos movem pelas ruas de uma cidade? Parece ser essa a pergunta que a coleção “Dicionário Amoroso das Capitais Brasileiras”, da Editora Casarão do Verbo, pretende responder. Seus livros buscam traçar um mapa das cidades capitais no Brasil, mas, de forma bem diversa dos guias turísticos tradicionais, sem se preocupar com indicações de hotéis e restaurantes, melhores locais para compras, faixas de preço e horários de funcionamento. O que os livros dessa coleção pretendem é fazer ver cada cidade através dos olhos de alguém que é apaixonado por elas.

Em um formato que lembra realmente o de organização dos dicionários, os livros da coleção desenvolvem-se através de verbetes dispostos em ordem alfabética intercalados com algumas ilustrações que remetem aos pontos abordados no texto. Não há uma ordem obrigatória de leitura, podemos apenas abrir ao acaso ou consultar verbetes específicos. Os escritores – um para cada capital – seguem uma escrita leve, descontraída, como em uma conversa informal com o leitor.

O primeiro livro, escrito por Altair Martins, nos traz a cidade de Porto Alegre através de verbetes como ‘Elis Regina’, ‘Guaíba’, ‘Largo dos Açorianos e ‘Pôr do sol”. Misturam-se em suas páginas, portanto, personagens, lugares e elementos impalpáveis que caracterizam a cidade. Neste último, o autor parece concentrar seu afeto pela capital gaúcha, quando afirma: Porto Alegre é especial por sua luz, uma luz de incidências cheias, que resiste até que o sono a vence. As águas levam as cores a pique. É quando a noite recolhe tudo. Na camomila do horizonte, a cidade dorme.

Já no segundo livro encontramos Salvador, apresentada por João Filho. Passeamos pela ‘Lagoa do Abaeté’, pela ‘Cidade Baixa’, conhecemos o conjunto ‘Camisa de Vênus’ (do qual ficamos sabendo que “não é uma banda, é um insulto”), a ‘Mãe Menininha do Gantois’ e o ‘Sebo Brandão’. A soma de todos esses aspectos pretende nos oferecer um vislumbre da capital baiana desenhado por alguém que a conhece para além dos pontos-chave e já bastante famosos.

Já estão prontos também os Dicionários Amorosos de Curitiba e Recife, que vêm somar-se ao conjunto das capitais apresentadas pela coleção e enriquecem o panorama diverso apresentado pelas cidades brasileiras.

Junto com o conhecimento mais estruturado sobre o espaço urbano, que apoia-se em mapas, estatísticas, pesquisas e dados cadastrais, a proposta desse conjunto de livros é adicionar mais uma possibilidade: um saber movido pelo afeto, guiado por aqueles que amam o espaço que estão apresentando e se sentem confortáveis nele. Se tal enfoque corre sempre o risco de pecar pela parcialidade e pela ausência da objetividade, por outro lado, a possibilidade de um olhar amoroso para uma cidade pode se mostrar capaz de entrar em recantos inacessíveis por meios mais diretos de apreensão. A delicadeza da percepção afetuosa faz de cada cidade uma descoberta única, um panorama original e uma viagem inédita para quem se decide a iniciá-la.

Entrando totalmente no espírito da cidade que apresenta, o autor do guia sobre Salvador nos presenteia com um verbete sobre uma das características mais alardeadas dos baianos: a preguiça. Ficamos a especular que essa atitude -definida como “um tipo altamente desenvolvido de contemplação amorosa do mundo” - talvez seja o espírito certo para se apreciar uma cidade. Afinal, se formos dar ouvidos à afirmação de Rubem Braga de que “aprender uma cidade é na verdade uma coisa lenta, é preciso saber alguma coisa e precisamos andar distraídos, bem distraídos para reparar nessa alguma coisa...”, a coleção que apresenta as nossas capitais através desse olhar permeado de afeto e perscrutador dos detalhes pode revelar-se ser uma boa maneira de começar a experimentá-las.

Das paixões despertadas pelas cidades
Eliana Kuster
é arquiteta, doutora em Planejamento Urbano e Regional, professora do IFES - Instituto Federal do Espírito Santo.