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Narrativas pandêmicas e espaciais
a produção do espaço da cidade dentro e fora dos sujeitos em Montes Claros/MG
Por Vinícius Corrêa Araújo e Gustavo Souza Santos
De súbito silêncio, a operação do cotidiano na produção do espaço urbano passou a ser enclausurada nos recônditos privativos dos lares. O lar como lugar do repouso, da privacidade e da subjetividade que encontra abrigo, passou a designar espaço seguro e terreno limitado de vivência. A circulação e os fluxos que irrigam as tramas urbanas foram compulsoriamente radicados ao confinamento como medida salutar, ainda que provada por dificuldades conjunturais e ideológicas.
As narrativas cotidianas alinhavadas no trânsito de fluxos, no ir, no vir, no movimentar-se de si para fora, de dentro para o outro, do espaço para o eu, tornaram-se narrativas de isolamento. O lar como comuna do repouso e das operações privadas tornou-se a única narrativa responsiva e possível. A construção do espaço tornou-se ensimesmada: das ruas aos cômodos, da paisagem às janelas, da jornada à permanência no núcleo aninhado que se constrói ora sozinho, ora de modo familiar.
A produção de si que é contígua com o franco espaço em produção, aquele de fixos e fluxos, tornou-se irrevogavelmente uma produção condicional. Uma vez que o trânsito da rotina está suspenso, as espacialidades já cultivadas puderam tão somente torna-se centelha utópica por um momento vindouro de redenção da narrativa pandêmica circunstancial. Se o fora de casa é hostil, o dentro de casa, pelo choque dos influxos de fora e de dentro, torna-se também uma arena intempestiva e produtiva.
Ora, produzir os espaços continua por interpolações de dentro e fora de si, na internalização do lar. Oblitera-se a noção espacial como conjuntura agregadora de corpos, objetos, ações e sentidos. Incorpora-se uma ideia produtiva de espaços de dentro, por dentro, para dentro: dentro da realidade, por dentro de si e para dentro de casa, esse lastro localizado e quase político – afinal, guardar isolamento torna-se subversão em tempos de disputas agudas.
O anelo humano de construir-se produzindo o interior a partir do exterior, isto é, resvalando e vertendo sua existência no/com/pelo espaço permanece. Todavia, essa permanência encontra novas formas de se narrar e posicionar. Narrativas pandêmicas são narrativas espaciais, entre a hostilidade da aglomeração e a necessidade de produzir a si produzindo o espaço. O tempo é decantado.
Em Montes Claros, cidade média que exerce centralidade entre os 89 municípios que compõem a mesorregião Norte do estado de Minas Gerais, esse momento chega com solitude. Essa construção é sinalizada pela interdição e pelo temerário. Cenas de construção civil e estéticas artísticas marcam a paisagem urbana. A imagem de obras na cidade tenta propagar que ainda há movimento, ruído e quebra no silêncio que anestesiou a percepção espaçotemporal do cotidiano.
As fotos que seguem apresentam cenas da paisagem montes-clarense delineando uma tela eloquente aos citadinos de que ainda há mobilidade em meio às notícias, aos temores, à insegurança dos protocolos de flexibilização. Ao longo de junho de 2020, essas cenas retratam sinais de recomeço que introjetam a ideia de retomada que será disputada na percepção dos sujeitos sobre que tipos de espaço querem produzir postos os atravessamentos pandêmicos.
Montes Claros possui 409.341 habitantes, conforme estimativas de 2019 pelo IBGE1. Os dois últimos anos foram marcados pela inauguração de diversos parques urbanos distribuídos sobre regiões diversas da cidade. Obras de distribuição do trânsito – cada vez mais intenso – duram alguns meses. Há um desenho de uma paisagem urbana propalada como signo de desenvolvimento. Todavia, questiona-se que, no afã construtivo, o modelo de cidade não é debatido entre seus sujeitos. Que narrativas serão construídas?