nº 13 ano 4 | Junho 2013
Ensaio

Devolvam o Rio de Janeiro

Por André Mantelli

Durante muito tempo no meu imaginário suburbano – e também através dos anos em que vivi longe do Rio de Janeiro – a cidade sempre me inspirou o ideal libertário que ela representava: as ruas eram o ambiente propício para a sua constante reinvenção. Um dia o sertão viraria mar e o mar ia virar sertão.

A característica marcante que diferenciava o Rio das outras cidades em que morei era um notável uso do espaço público, sempre cheio, escancarado, muitas vezes identificado com a praia ou o carnaval mas que igualmente pulsava em tardes de Maracanã ou em pracinhas de bairro, na Quinta da Boa Vista ou na Floresta da Tijuca, nos sambas de roda nos bares, nos becos e travessas do Centro, no Aterro e nos inúmeros parques, trilhas e outros templos ritualísticos do cotidiano carioca.

À parte da velha tradição oficial da província elitista que sempre combinou serviços ruins para muitos e loteamento de privilégios para poucos, pensava que de Norte a Sul até a zona Oeste havia uma relação de pertencimento com a cidade.

Quando voltei ao Rio vivi a experiência 'gringa': era um estrangeiro na minha própria cidade e isso significava, portanto, que estava morando na sua 'zona cenográfica.' Foi também a revelação da Egópolis. Percebi alguma coisa fora do tempo ali.

Encontrei um carioca que ao ouvir qualquer crítica mais pontual sobre a cidade reagia como se eu houvesse dito uma heresia inominável. Falar mal do metrô-cobrinha era ofensa. Até a mais alta das malandragens se rendia sempre à beleza exuberante da paisagem na justificativa de sempre: “ah, viver na cidade maravilhosa é uma bênção e isso tem o seu preço.” Péraí. Que preço? O preço da exclusão? Do mesmo movimento de marginalização de toda a história desta cidade?

O Rio das oportunidades não sustenta a sua própria propaganda. – Cadê o Rio que tava aqui? Perguntou o narciso sonolento. Não tá somente na entropia do trânsito e do concreto especulativo que destrói coisas belas (não, a citação aqui não foi um acaso – como aliás nada é). Mas já tinha desabado faz tempo nas remoções, despejos e chacinas nas favelas, na privatização constante e vergonhosa da cidade, na máfia antimobilidade e na violação de tudo quanto é direito em nome dos chamados megaeventos. Então veio o capital pra descer o pau.

No meu imaginário suburbano, penso que o sentido desta cidade é de não ser apenas um Rio, mas vários, e nessa complexidade é que criamos e amadurecemos nossas referências simbólicas, nossa mitologia além-sobrevivência. Em algum momento as diferenças estariam mais esclarecidas e capazes de disputar seus espaços. De volta.

Neste desequilíbrio todo de uma força apolínea que se diz ordem e se fez violência, as bombas de gás lacrimogêneo despertaram os mistérios dionisíacos. Libertaram a verdadeira alma encantadora das nossas ruas, a nossa vocação ao caos: a partir de agora, como resposta ao erro primário e fatal de tentar apagar a identidade de um povo, cada cidadão terá o seu próprio redemoinho e o direito inalienável de ser saci.

No meu imaginário suburbano não existe subúrbio. Porque aqui a cidade é nossa e ninguém tasca.

Devolvam o Rio de Janeiro
André Mantelli
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